Como se não houvesse amanhã, Michele Silva Joaquim, 35, historiadora, curtiu o carnaval de 2018: se jogou nas batidinhas alcoólicas o dia todo e na hora da fome, cheeseburguer com muito queijo. Só que o dia seguinte chegou. E em péssima companhia. “Acordei à noite com uma diarreia muito forte”, lembra.
Michele foi a um gastroenterologista, que pediu teste de intolerância à lactose, ao glúten e doença de Crohn. “Deu superpositivo para IL, meu organismo praticamente não produziu glicose durante 1h30 de exames. Passei muito mal durante o exame”, conta.
Desde então, ela integra a estatística brasileira: cerca de 35% da população acima de 16 anos, segundo o Instituto Datafolha, relata sentir algum mal-estar depois de tomar uns goles de leite ou ingerir seus derivados.
É a deficiência parcial ou total da enzima lactase, responsável pela digestão da lactose, que é o carboidrato do leite. Quando tomamos um copo de leite, por exemplo, a lactase é quebrada em dois açúcares (galactose e glicose) que são absorvidos pelo intestino delgado, alcançam a corrente sanguínea e, então, são utilizadas como fonte de energia pelas células. Vamos do início: o que é intolerância à lactose
Contudo, se a produção da lactase é deficiente, a lactose passa para o intestino sem ser digerida e é fermentada pelas bactérias que lá habitam. É isso que causa os seguintes sintomas desagradáveis: dor abdominal, diarreia, inchaço, excesso de gases, constipação, náuseas, e até câimbras e vômitos.
A intensidade do mal-estar varia de acordo com a quantidade de lactose ingerida, com a integridade intestinal, idade e genética. Geralmente, os sintomas começam cerca de 30 minutos a 2 horas após o consumo de leite ou laticínios e podem durar dias.
Lidia Myung, 45, ginecologista e obstetra, descobriu a IL há uma década. “Já havia alguns anos que o meu hábito intestinal tinha aumentado, que as fezes estavam amolecidas e eu tinha gases, cólicas, estufamento abdominal, náuseas, fadiga, dores musculares pelo corpo e irritabilidade. Foi meu marido quem reparou que essas reações eram sempre após a ingestão de derivados de leite”, fala.
Ao fazer o teste em laboratório, o diagnóstico se confirmou. E Lidia precisou de tempo para lidar com a notícia.
“Por quase dois anos eu entrei em negação, não queria admitir que pudesse ter desenvolvido esse problema. Seria um transtorno nos meus hábitos de vida. Eu fiquei emocionalmente abalada”, conta Lidia Myung.
Monalisa Cavallaro, 34, nutricionista e autora do blog Diário sem Lactose, descobriu a intolerância à lactose em 2009, um ano depois de começar a investigar as causas do desarranjo intestinal e das fortes dores abdominais que sentia.
“As crises iam e voltavam, até que chegou em um ponto que eu estava sempre com diarreia”, explica Monalisa Cavallaro.
Foi uma otorrinolaringologista quem levantou a suspeita de IL. “Comentei sobre a minha situação e ela me passou o exame por suspeitar de alguma relação entre o leite e fortes crises de rinite [um dos sintomas da alergia ao leite]. Se não tivesse ido nessa consulta, não sei quanto tempo mais o diagnóstico demoraria”, lembra.
O relato de Monalisa ilustra um fato: o diagnóstico de IL nem sempre é rápido. Muitas vezes, é preciso fazer mais de um exame para confirmar. Alguns especialistas também optam por retirar os lácteos da alimentação por algumas semanas e só depois pedir exames, como estes listados a seguir:
Não estamos aqui para enganar você, a rotina vai mudar com a restrição alimentar, como conta Michele: “É muito estranho, um dia você come de tudo, no outro, não pode chupar uma bala sem ler a embalagem, porque pode ter alguma reação”, diz.
A relação com os garçons também pode ficar estranha: “Comer fora é um perrengue, porque as pessoas não entendem o problema, fazem pouco caso, mentem. E às vezes não sabem, mesmo. Elas lembram do queijo e do leite, mas esquecem da manteiga, por exemplo”, fala Michele.
Você vai precisar se planejar mais ao decidir sair para comer:
“Procuro pesquisar restaurantes com antecedência e acabo optando pelos veganos sempre que possível”, diz Monalisa.
E, às vezes, terá de mentir: “Quem não conhece a intolerância à lactose, estranha e a acha que é frescura. Eu simplesmente falo que não posso consumir e ponto. Já cheguei a falar que sou alérgica, porque soa mais alarmante e pode até levar à morte. Não é o certo, mas às vezes uso esse recurso”, conta Michele.
Com o tempo, porém, as coisas se ajeitam. Vira usual pedir uma pizza brotinho sem queijo só para você ou levar seu próprio kit de café da manhã para as viagens em turma ou em família.
“No último fondue que fui com os meus amigos, comi amendoim, frutas e pão sírio com patês preparados especialmente para mim pela minha amiga. Foi ótimo, não senti falta do fondue”, fala Michele Silva Joaquim.
Lidia, assim como Monalisa, tambem tem escolhido restaurantes veganos ao sair. Já Michele, descobriu uma hamburgueria vegana para eleger como favorita e passou a frequentar restaurantes árabes que, segundo ela, sempre apresentam boas opções de pratos sem lactose.
Os queijos maturados contêm bactérias que se alimentam da lactose e, por isso, reduzem a quantidade do carboidrato por porção
Leite e seus derivados são fonte de cálcio da alimentação. Ao ter que diminuir o consumo, é importante recorrer a outros alimentos que também são fontes do nutriente. Vegetais de cor verde-escura como brócolis, couve, agrião, mostarda, além de repolho, nabo, sardinha, tofu, sementes de gergelim e bebidas à base de soja, arroz, amêndoas ou castanhas enriquecidas com cálcio são algumas sugestões.
Para fortalecer a digestão e o intestino, os especialistas recomendam incluir no cardápio diário alimentos frescos, naturais e minimamente processados: verduras, legumes, frutas, cereais, grão integrais, ovos e gorduras saudáveis como azeite de oliva. Deve-se evitar o excesso de açúcar e de carboidratos refinados (refrigerantes, arroz e pão branco, por exemplo).
Os leites vegetais, com os de amêndoas, aveia, soja e arroz, possuem composição nutricional diferente da do leite de vaca, em termos de proteínas, vitaminas e minerais, como o cálcio e fósforo. O gosto também não é similar. Mas todos eles rendem versões sem lactose de comidas à base de leite, que podem ser suas favoritas – do café com leite ao sorvete.
Não há tratamento para fazer o organismo voltar a produzir a enzima lactase, mas a intolerância pode ser controlada, o que atenua bastante os sintomas desagradáveis.
Nem sempre será preciso excluir a lactose totalmente da alimentação. De acordo com os especialistas, mesmo as pessoas que não têm a enzima conseguem metabolizar em torno de 12g de lactose por dia, o que equivale a pouco menos de um copo de leite integral (300ml de leite contém 15g de lactose). Contudo, só após o diagnóstico, que vai identificar o tipo de IL, e com acompanhamento médico é possível traçar uma estratégia adequada e segura.
“Sinto falta de queijos. Em algumas ocasiões tomo uma enzima para poder comer”, fala Michele. As enzimas são vendidas nas versões em pó, comprimidos ou tabletes e devem ser ingeridos logo antes do alimento (inclusive o leite) para a digestão correta da lactose. Consumir essa enzima, no entanto, não significa que pode se jogar sem limites na lactose, sem ter de lidar com as consequências. Dependendo da quantidade de lactose consumida, a enzima não vai dar conta.
A lactose sozinha não faz o dígito da balança mudar. Mas se você retirar um grupo alimentar inteiro da sua dieta, como é o caso dos lácteos, e não substituir por outro, vai reduzir o consumo de calorias do dia e pode emagrecer.
Como toda dieta restritiva, tirar a lactose do cardápio não leva à nenhuma mudança de comportamento, porém, e pode causar descontrole alimentar. Foi o que aconteceu com a Lidia. “Logo que descobri a intolerância, passei a ingerir mais carboidratos para compensar e cheguei a ganhar peso”, conta.
É preciso considerar também que, restringir a lactose sem um diagnóstico de intolerância pode resultar em sintomas de intolerância. É porque as enzimas digestivas, como é o caso da lactase, são produzidas por demanda. Se você para de consumir leite e seus derivados por um longo período, a produção da lactase vai cair. Será preciso um tempo ingerindo leite constantemente (e lidando com o mal-estar), para a enzima voltar a ser produzida.
Esta reportagem consultou as seguintes fontes: Bruna Mambrin, nutricionista da NutriCilla Clínica de Nutrição (SP); Clarissa Hiwatashi Fujiwara, nutricionista da ABESO (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica); Elisa Yumi, nutricionista; Fadlo Fraige, endocrinologista da BP (Hospital A Beneficência Portuguesa de São Paulo); Flavia Machioni, culinarista funcional e fundadora do canal no YouTube Lactose Não; Mario Kedhi Carra, endocrinologista; Silvia Benvenutti, nutricionista da Clínica Medicina da Mulher (SP) e Sílvia Corral de Arêa Leão Souza, endocrinologista.