A chef chegou a participar da preparação de um jantar para o reality show “A Fazenda” e do programa “Chefs na Rua”. Em entrevista ao Guia da Cozinha, Govinda Lilamrta conta sobre a sua trajetória na gastronomia e o que a levou a criar o seu próprio restaurante.

“A comida reúne e nos faz relacionar com o mundo”, afirma Govinda Lilamrta. Chef de cozinha e defensora de uma alimentação saudável, saborosa e vegana, Lilamrta começou a trajetória profissional na cozinha do Templo Hare Krishna de São Paulo, aos 17 anos. Foi na prática, entre facas e panelas, que ela se formou e se apaixonou pela gastronomia. Hoje, aos 35, Lilamrta carrega também no currículo os 11 anos de experiência na cozinha do restaurante indiano Gopala Madhava, localizado no centro de São Paulo. E mais alguns anos como professora em cursos e oficinas de gastronomia. Referência na culinária Hare Krishna e vegana, a chef chegou a participar da preparação de um jantar para o reality show “A Fazenda” e do programa “Chefs na Rua”. 

Em 2020, Govinda decidiu arriscar e abriu o próprio restaurante, o Pratada SP. Localizado no centro da capital paulista, o espaço foi inaugurado no dia 10 de fevereiro, poucos dias antes do início da pandemia do novo coronavírus. Com um menu livre de crueldade animal, com opções saborosas e acessíveis, a proposta do Pratada é que pagando apenas R$ 29,00 o cliente consuma salada, prato principal, sobremesa e bebida, rompendo com o elitismo do veganismo, nas palavras da própria chef. O menu do restaurante – que muda a cada estação, respeitando os ingredientes sazonais – traz receitas inspiradas na culinária indiana como o dahl e o pakora, além de pratos mais abrasileirados como o escondidinho de carne de jaca, a moqueca de banana-da-terra e a lasanha de espinafre. 

Dividindo a cozinha com uma equipe composta por 70% de mulheres, o Pratada já conquistou o coração dos adeptos da dieta vegetariana e daqueles que ainda não conseguiram abandonar a carne. “Um dado importante aqui do restaurante é que a maioria dos nossos clientes não são veganos, cerca de 80% são pessoas que estão dispostas a diminuir e repensar o consumo da carne, que estão pensando no que consomem e como consomem”, conta Govinda. 

O sucesso do restaurante é a realização de um sonho para a chef que é vegetariana desde os 4 anos. “Há alguns anos as pessoas não pensavam no vegetarianismo e muito menos no veganismo, era uma coisa inconcebível para elas” e prossegue, “poder oferecer uma comida de qualidade e mostrar que comida vegetariana não é só chuchu no vapor, que ela pode ser saborosa e ter um valor acessível. É uma forma de militar pelo vegetarianismo e veganismo. É uma militância pequena, mas é a minha militância”.

Com muita confiança em suas receitas, Govinda Lilamrta conta ao Guia da Cozinha um pouco mais da sua trajetória e sobre como é empreender na gastronomia.  Confira a entrevista!

Como iniciou a sua relação com a cozinha, até se tornar chef?

Eu aprendi a cozinhar em um templo Hare Krishna. Aos 14 anos morei em um templo e lá eu comecei a cozinhar, com 17 anos. Um tempo depois eu trabalhei no Gopala. A minha formação foi toda, na prática, eu nunca fiz um curso ou faculdade de gastronomia. Tudo que sei aprendi na prática, na cozinha. Eu trabalhei durante 11 anos no Gopala e depois comecei a fazer eventos solos, dar cursos, etc. 

E o que eu faço é meio único porque a minha escola é a escola indiana. Ela traz essa inspiração da Índia nos temperos e na forma de preparar os alimentos, é outro olhar. Então, essa comida bem temperada, bem executada, fez com que eu virasse uma referência. E aí comecei a dar cursos, fazer eventos em diversos formatos. Comecei a participar de coletivos como o Maloca Querida, Casa Goiaba, Ateliê do Bexiga, Instituto Feira Livre, entre outros.

E a sua relação com a culinária vegana?

Por conta do Hare Krishna eu sou vegetariana desde os meus 4 anos. Então, tenho muita familiaridade com a culinária vegetariana porque faz parte do meu dia a dia e não tive uma transição. Penso que uma das dificuldades das pessoas é que elas só conseguem pensar na carne como prato principal, deixando os legumes como secundários. E na hora de fazer a transição para o vegetarianismo ou veganismo, as pessoas ficam perdidas e não conseguem trazer o legume para esse prato principal. Mas, eu já tinha muita familiaridade com esse universo, com as receitas, com os legumes. 

Em outros momentos, cursos e palestras, você discutiu bastante como a comida se relaciona com afeto, corpo e história. Para você, qual a importância dessa discussão, de falarmos para além do alimento, mas sobre tudo o que ele significa?

A comida reúne, a comida nos dá energia, nos faz relacionar com o mundo. Mas, para o Hare Krishna, ela vai além. O Hare Krishna é uma religião e nós acreditamo em Deus, é uma religião monoteísta. E eu sou uma alma espiritual e serva eterna de Deus e o meu objetivo é servir a Deus para me conectar com o amor. Uma das formas de servir a Deus, é oferecer o alimento como um reconhecimento, um agradecimento. Então, no Hare Krishna, o alimento também é espiritualidade, além de todas as outras coisas como afeto, e união. No final das contas, o alimento não é só para o corpo, é também para a alma. 

Moqueca de palmito com farofa de tofu e açafrão, banana-da-terra na chapa e arroz integral, um dos pratos servidos no Pratada / Foto: Reprodução Facebook Pratada SP

O Pratada SP une essa culinária vegana com a culinária Hare Krishna. Qual foi o insight para que você resolvesse abrir o restaurante? Você sentiu falta no mercado de um lugar que unisse essa comida com outra proposta, que discutisse o alimento, fosse saborosa e tivesse um preço acessível?

O Pratada é a realização de um sonho, porque desde criança eu sonho em poder comer na rua uma comida boa e de qualidade e com muitas opções. Eu até brinco que na minha época isso aqui era tudo mato, a gente saía para comer e só tinha batata frita, salada de alface e no máximo um arroz porque no feijão tinha bacon. Há alguns anos, as pessoas não pensavam no vegetarianismo e muito menos no veganismo, era uma coisa inconcebível para elas. Muitas vezes, por exemplo, em excursão de escola, eu levava o meu lanche de casa ou chegava em algum lugar e procurava uma feira, um hortifrúti e comia fruta.

Hoje em cada esquina tem um restaurante, sempre tem alguma opção vegetariana nos lugares. Quando eu trabalhei no Gopala, abrir um lugar como ele era um grande sonho, porque eu achava aquele lugar mágico. Ainda acho. Então eu tinha muita vontade de ter esse lugar, de poder oferecer uma comida de qualidade, saborosa e mostrar que comida vegetariana não é só chuchu no vapor, que ela pode ser muito gostosa. E ter um valor acessível, penso que é uma forma de militar pelo vegetarianismo e veganismo, porque podemos dizer que vegetarianismo e veganismo são elitistas. Por mais que cozinhar em casa seja acessível, a culinária vegetariana e vegana ainda é um conhecimento que as pessoas não têm. E de uns tempos para cá fomos deixando isso mais inacessível com os produtos industrializados e os orgânicos. Todas as coisas ficaram muito caras. Então, fazer uma refeição de qualidade com um valor acessível faz parte desse sonho e de uma militância pelo veganismo. É uma militância pequena, mas é a minha militância.

E aqui no Pratada, tem um dado que eu acho importante, é que a maioria dos nossos clientes não são veganos. São pessoas que estão dispostas a diminuir e repensar o consumo delas, 80% dos meus clientes são pessoas que estão pensando no que consomem, como consomem e em consumir menos. E a maior resposta que eu tenho hoje [de que está dando certo] é que as pessoas voltam, elas gostam da minha comida e estão sempre voltando, tem cliente que vem aqui comer todo dia e nem é vegetariano ou vegano.

Por que você considera esses movimentos elitistas?

Eu acredito que são movimentos elitistas, não deveriam ser, mas, acabaram se tornando. E é possível sim, você se alimentar bem com pouco dinheiro, mas isso envolve tempo, informação. As pessoas que estão na periferia, por exemplo, e estão lutando pelo alimento de cada dia, não possuem tempo para fazer uma feira no horário da xepa na quinta-feira, às 15h. Ou então depois de um longo dia de trabalho, após pegar quatro horas de transporte público. Elas não vão chegar em casa e fazer a comida da semana, é muito mais fácil comer salsicha, nuggets, etc. E aí, entramos em outra questão que é a nutricional. Quando consumimos um bando de alimentos ultraprocessados fica difícil criar um hábito saudável, não é só a questão do valor do ingrediente, mas também o valor do tempo. É muito além do dinheiro, é sobre conhecimento. E o conhecimento não está acessível, por isso, torna-se elitista.

E como o Pratada contribui com a quebra desse elitismo?

Nós oferecemos uma refeição completa por um valor mínimo para manter o espaço, poder pagar os funcionários. E estamos dando uma diversidade nos pratos, dando comida fresca, bem preparada e saborosa. Essa é a nossa forma de contribuir para que o veganismo se torne acessível. Nós também oferecemos marmitas congeladas para levar para casa. E um plano é oferecer cursos e oficinas no futuro. 

Dahl de feijão-preto, tofu marinado e grelhado e crisp de couve, servido às segundas no Pratada / Foto: Reprodução Facebook Pratada SP

Vocês inauguraram em fevereiro de 2020, pouco antes de a pandemia começar. Como foi empreender durante um momento tão complicado?

No início, quando decidimos abrir o Pratada, éramos 3 mulheres e depois para compor o investimento vieram 3 homens. Hoje, somos 6 sócios. Nós planejamos o restaurante quase 1 ano antes de abrir, foi bastante tempo para executar o plano de negócios, pensar na estrutura e tudo mais.

Nós abrimos 5 dias antes de a pandemia começar, foi uma grande loucura. Coragem e loucura estão lado a lado, né. Foi um trabalho em equipe imenso, muito improviso e coragem, porque ninguém sabia o que ia acontecer. Fomos nos adaptando dentro do que era possível fazer naquele instante, com a filosofia de um dia de cada vez. Ficamos fechados e depois entendemos que precisávamos voltar e nos adaptar ao delivery. Quando abrimos, tínhamos plano para fazer o delivery, mas seria em seis meses e, com a pandemia, tivemos que fazer em dois. Tivemos que pensar em tudo, nas embalagens se íamos aderir aos aplicativos ou não. Foram várias questões.

E quais os planos do Pratada para 2021?

Sobreviver. Quando abrimos, tínhamos muitos planos, fazer delivery, abrir durante a noite, abrir para residência artística. Mas eles estão todos suspensos esperando uma situação mais definitiva. Então, por agora, o nosso plano é só sobreviver.

Hoje a equipe é composta por 70% de mulheres. Como a sua trajetória influencia o seu olhar para a gastronomia e também para o mercado no geral?

Eu falo sempre que pratico a micropolítica aqui e que essa é a minha forma de lutar. Quando eu contrato uma auxiliar ou uma garçonete, por exemplo, dou prioridade para que seja uma mulher preta, mãe, pessoas trans e LGBTQI+. Eu procuro sempre ter esse olhar e cuidado, que é pequeno, mas pode fazer diferença na vida de alguém.

Para mim, isso é uma coisa natural. Tive sorte de encontrar poucas pedras no caminho, o que é uma exceção. Mas, já tive que dar carteirada e enfrentar o racismo e o machismo. Diversas vezes fui apresentada como “a Govinda que trabalha com culinária há 17 anos” e muitas pessoas ficarem surpresas por eu ser jovem. Ou, então, quando eu estou trabalhando com um auxiliar homem ou com pessoas brancas, os elogios são todos atribuídos a elas e nunca a mim. Isso aqui no restaurante não acontece mais porque a minha cara está no Instagram, então é outra relação.

Ainda sobre o cenário da mulher na gastronomia. Na sua opinião, como tem sido essa presença, a conquista desse espaço?

Acho que [o machismo na gastronomia] é um problema do nosso patriarcado. Porque quando é um trabalho de cuidado e doméstico ele é relegado às mulheres, mas quando tem prestígio, remuneração, aí é um “trabalho de homem”. É o machismo agindo. Mas, eu acredito que o lugar da mulher é onde ela quiser, na gastronomia ou em qualquer outra profissão. E a cozinha, sendo uma escolha e um ato consciente, é um lugar de emancipação.